A Dignidade da Pessoa Humana e o Transplante de Órgãos e Tecidos

Valderez Bosso
02/02/2009


A dignidade da pessoa humana é o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional, "é a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete"[1].

Considerado como o princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidas às pessoas no que se refere ao texto constitucional. É um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da nossa história, chegando ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, constituído pela razão jurídica[2].

O ilustre Fabriz contribui com a sua magistral consideração: "o mencionado princípio torna-se a coluna vertebral do Biodireito, sendo princípio que se estabelece como direito humano e fundamental". [3]

No mesmo sentido, preleciona Rizatto Nunes:

[...] acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha - ou, tem o direito de ganhar - um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade -, sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade. [4]

Por certo, o conceito de dignidade que é de específica aplicação ao ser humano, tem nítida fundamentação religiosa e faz parte da mais tradicional doutrina cristã.

Isto posto, qualquer pessoa humana, pelo só fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Por esse motivo, não se admite discriminação, seja em razão do nascimento, raça, inteligência, saúde mental ou crença religiosa. Assim, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana não pode deixar de ser considerado em qualquer ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas, devendo sempre estar assegurados, ao lado desse princípio, os demais direitos fundamentais encontrados em nossa Carta Magna.

No que tange ao transplante de órgãos e tecidos, temos que não é apenas um ato de benemerência do ser humano. Desde a doação de um órgão, até que esse seja transplantado, estão incutidos alguns direitos fundamentais pertinentes ao doador e ao receptor, como o direito à vida, a formação dos direitos de personalidade, a integridade física e o direito ao próprio corpo, a liberdade de consciência e o poder de disposição do próprio corpo.

Parte da sociedade concebe a vida como algo intocável e sagrado. Isso em função da cultura religiosa que acompanha até hoje a nossa civilização. "O argumento de que Deus é o dono absoluto da vida e que essa é sacral, prestou um grande serviço à humanidade, enquanto não havia legislação para defender a vida".[5]

No entanto, a humanidade tem hoje condições de defender a vida com critérios racionais, bastante diferentes das gerações que tinham a vida como um tabu, tomando essa idéia como a única maneira de defendê-la.

O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos de personalidade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integridade existencial, conseqüentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. [6]

A lei permite a doação inter-vivos para fins de transplante quando se tratar de órgãos duplos, partes de órgãos tecidos e partes do corpo. Isso tudo desde que a extração do órgão respeite a integridade física do doador.

O consentimento é um pressuposto de licitude quando se tratar de qualquer atividade que atinja a integridade física do ser humano. Assim sendo, o consentimento tem de ser livre e espontâneo, não podendo haver qualquer forma de coação. O direito fundamental ao próprio corpo está diretamente relacionado à noção dos direitos de personalidade.

O direito ao próprio corpo evidencia-se cada vez mais na área do biodireito "especialmente diante dos avanços das técnicas de tratamentos empregados pela medicina que envolve possibilidade de disposição de certas partes do corpo humano, ora em prol do mesmo sujeito, ora em favor de outra pessoa".

Tendo em vista a principal alteração introduzida pela Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001, em ser art. 4º, a qual institui que apenas os familiares elencados nesse artigo devem decidir acerca da doação, ou não, dos órgãos de seu familiar falecido, podemos ultimar que quando se tratar do consentimento para a doação de órgãos e/ou tecidos, a liberdade de consciência do doador e o poder de disposição do seu próprio corpo, devem ter prioridade sob qualquer decisão de seus familiares.

Nesse ponto, é que chamamos a atenção do leitor para dar informação de seu desejo a todos que o cercam: família, amigos íntimos, etc., já que o não conhecimento por outros do seu desejo de ser doador de órgãos, não se refletirá de forma a conduzir-se à doação, e aí seu direito individual restará maculado.

Futuramente, pretende-se, construir um pensamento que assegure que a liberdade de consciência do doador, ou seja, a construção e constituição expressa de todos os seus valores e princípios em vida, devem estar acima de qualquer decisão de seus familiares, quando se tratar de um doador em potencial, pois por hora, apenas a informação e o respeito a sua vontade fará valer o exercício do seu direito individual.

Como se sabe, o transplante é um tipo de terapia em que o sucesso, na maioria das vezes, ao contrário das demais, depende mais dos outros – e inúmeras vezes de forma involuntária – do que da vontade do doente e dos médicos, pois, sem um doador, não há a possibilidade de realização de um transplante.

No entanto, tem-se por regra que a doação de órgãos e tecidos ocorre após a da morte encefálica do doador. Apesar da conceituação de morte encefálica, já estar pacificada tecnicamente nos meios médicos e jurídicos através da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.480 de 1997, ainda é um mito entre a maioria dos doadores em potencial.

As pesquisas mostram que no Brasil, a cada ano, em cada 1.000.000 de habitantes, entre 50 e 60 pessoas podem se encontrar em situação de morte encefálica - condição que leva alguém a tornar-se um potencial doador; no entanto, entre 200 e 300 pessoas, podem desenvolver insuficiência renal crônica, por exemplo, e vir a precisar de um transplante; portanto, a chance de que alguém seja doador de órgãos é quatro a cinco vezes menor do que a chance de que venha a precisar de um transplante. (www.geocities.com/HotSprings/Villa/1298/index.html)

Com relação às religiões, observamos que a maioria incentiva à doação de órgãos e tecidos, considerando o ato uma decisão individual de seus seguidores. Para as Testemunhas de Jeová, para quem a transfusão de sangue, por exemplo, não é admissível, a doação de órgãos e tecidos "limpas" de sangue é permitida.

Destarte, percebe-se claramente que a desinformação é o fator principal para o pequeno número de transplantes realizados no país, e da longa e sofrida fila do receptor no aguardo de um possível doador.

Assim, o que é mais importante nos dias atuais é que nenhum órgão poderá ser doado/transplantado SEM a AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA FAMÍLIA, assim, o doador deverá informar sua família do seu desejo.

Mais do que um gesto de solidariedade, ser doador de órgãos significa vencer a morte!

No próximo dia 27 de Setembro temos o dia Nacional da Doação de Órgãos. E por isso a Comissão de Bioética da OAB de Jundiaí, traz a tona novamente esta mensagem de vida e de incentivo à doação de órgãos.

Pense sobre isso! Seja Doador! Avise a sua família e amigos!
[1] NUNES, Rizatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 45.
[2] FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 19.
[3] FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 355.
[4] Ibid, pg.49.
[5] JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora da Universidade do Rio dos Sinos, 2003. p. 113.
[6] FABRIZ, op. cit., pp.274-275.

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